Morreu um amigo

Sabia que tinha dois meses de vida.

Era médico mas parecia ser matemático quanto à sua esperança de vida. Era o que se pode dizer, com propriedade, um homem bom. Para ele, eu era o Manel; para mim, sempre foi o Senhor Doutor.Exerceu toda a sua carreira num hospital público: o S. João.

Nunca exerceu "clínica privada". Entendamo-nos, nunca cobrou uma consulta aos muitos que ajudou fora do seu horário de devoção à profissão. Pouco falamos nestes últimos trinta e tal anos.

Não era preciso, sabíamos que nos estimavamos. O sorriso aberto mútuo quando nos cruzavamos, não enganava.

Era uns anitos mais velho, cerca de vinte, mas sempre me tratou elegantemente como um seu par. Lembro com saudade a paciência com que jogava comigo, horas a fio, o "Assalto ao Castelo" e o "Jogo da Glória". Recordo que foi ele que primeiramente me disse que o regime anterior era uma fraude. Nos idos de sessenta fez-me "ver" o 1º single do Zeca Afonso(à época era o Dr. José Afonso) explicando-me o sentido dos Vampiros e o ouro fagueiro do Meu Menino... Iniciou-me ao xadrez e ofereceu-me um Tratado de Ajedrez em 4 volumes(que orgulho!) que ainda hoje mantenho na minha estante. Aprendi com ele a matar a sede com leite frio sem açúcar.

Ficamos cúmplices para sempre e sabíamo-lo.Foi para mim uma pessoa determinante; obrigado por tudo o que me ensinou na vida através da sua atitude discreta mas firme, da sua magnanimidade austera, do seu carinho tímido para com todos com quem contactava.

Tínhamos uma última característica fraterna: eramos agnósticos com todas as dúvidas inerentes a essa condição. As certezas eram para os outros!

Um dia destes vemo-nos, Senhor Doutor Rosa Araújo, não é assim?